sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Anacronismos...

Hoje, ao início da tarde, sentia-me mais ou menos assim (com as devidas distâncias, é claro, que para chegar à beleza e à elegância de Audrey Hepburn, teria um longo caminho a percorrer)…

Ao dirigir-me ao meu local de trabalho, senti que eu não sou verdadeiramente eu, que este não é o meu tempo e nem o meu espaço. O meu eu usa um elegante vestido preto com a cintura bem definida, uns sapatos vermelhos de salto alto e toma o pequeno-almoço no Tiffany’s. E o meu eu tem, pelo menos hoje, esta banda sonora:


Dusty Springfield - "I only wanna be with you"


The Ronettes - "Be my baby"


The Beatles - "I wanna hold your hand"


Juliette Gréco - "Sous le ciel de Paris"

Sinto uma verdadeira nostalgia de um tempo que não vivi e não foi meu…

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

"A morte é uma puta!"

Esta Pensão tem estado, a modos que, abandonada (o que me leva a questionar a pertinência da presença de certos gerentes... É só uma piada…). Não reflecte falta de interesse, é antes o reflexo de momentos menos felizes em termos familiares. Bem sei que isto é suposto ser um espaço mais descontraído, mas nem sempre estamos para aí virados. Também sei que isto não é um diário (muito menos um confessionário), mas também sei que as pessoas que partilham este espaço comigo (gerentes e os poucos hóspedes) são amigos ou próximos disso, pelo que nos une se não amor e carinho, pelo menos um grau mínimo de preocupação e empatia. Isto tudo só para avisar que este é um post catártico – às vezes é preciso exteriorizar o que nos rói por dentro e nem sempre há dinheiro para psiquiatras. Quem quiser, está muito bem a tempo de parar de ler.
Quem me conhece sabe que este último ano foi, desculpem-me a expressão, um ano de merda. A morte inesperada e absurda da minha mãe abalou toda a minha estrutura familiar e de uma forma que não me parece, de todo, remediável (talvez suportável). Os dias que se seguiram tornaram-se toleráveis com a ajuda de algumas pessoas de família e de poucos amigos. Como é habitual, este tipo de acontecimentos mostra bem quem está à nossa volta: os que considerava amigos, assim o foram; outros que via como potenciais amigos revelaram que nunca poderiam ser mais do que colegas. Os dias foram sendo ultrapassados com incredulidade (que dura até hoje), com muitas lágrimas (a maior parte delas escondidas) e, infelizmente, com poucas palavras. Nunca falei da minha mãe o quanto queria – todos à minha volta acreditavam (parece-me…) que evitar o assunto era menos doloroso. Não pareciam compreender que eu gostava de falar dela… Doloroso? Talvez, mas menos do que ignorar, menos do que a guardar só para mim.
Um ano ainda é muito pouco para a conseguir recordar apenas com saudade tranquilizadora, com ternura apaziguadora – há ainda muita revolta a contaminar. Mas espero que com o tempo as memórias se tornem mais pacificadoras. Enquanto isso não acontece, partilho convosco algumas das coisas boas que já me fazem sorrir um pouco ao lembrar-me dela:
as histórias que ela me contava dos dias em que era delegada sindical e se empenhava na luta pelos direitos de todos (característica tão dela…);
os momentos que passámos desde que era pequena nas remodelações constantes da casa de que ela tanto gostava;
as incursões sempre imprevisíveis que fazíamos em Dezembro para encontrar musgo para o presépio;
o presépio que ela criou e que era absolutamente único, pois tinha tinha 3 reis magos pretos (quando os foi comprar não havia brancos, e é claro que isso para ela não era entrave…), um galo de Barcelos em cima da cabana onde estava a manjedoura, um estrunfe Pai-Natal e, mais recentemente, algumas ovelhas sem cabeça, fruto de um pequeno acidente;
os terríveis cortes de cabelo que ela insistia em fazer-me quando era pequena e que eu odiava profundamente;
a adoração que ela tinha pelo Amor de Perdição e pela Rosa do Adro, assim como pelo Zeca Afonso e pelo António Correia de Oliveira e tudo o que fosse música de intervenção;
a voz fantástica que ela tinha e que me habituei a ouvir desde pequena – tinha um talento natural e sempre que podia cantar em público e havia alguém com uma guitarra, lá cantava ela, com a voz a pender para o fado.
São apenas algumas coisas, mas são coisas boas demais para ficar guardadas. E não foi fácil fazê-lo durante um ano.
E por vezes o tempo não dá tréguas… A semana passada morreu o meu avô materno. Obviamente, não foi um choque, mas foi difícil. Por tudo o que se passou anteriormente, por ter sido no mesmo mês e por ter sido quase determinado pelo que aconteceu antes. Coincidências, ironias… O funeral da minha mãe foi no dia anterior aos anos do meu avô – que pai passa por isto incólume? O que é certo é que tal provação num homem saudável até então acordou uma doença que, segundo os médicos, já lá estava, mas adormecida. E o determinou o desfecho. Sabem, gosto da ideia de que ele morreu de amor, à semelhança do que aconteceu com o poeta Drummond de Andrade que morreu pouco depois da morte da filha. E, perdoem-me o tom negro, foi o único a ter coragem de fazer o que muita gente na família faria se pudesse…
Fico com uma óptima lembrança do meu avô, de quem muito gostava: lembro-me com muito carinho de quando era pequena e ele me ensinou a fazer moreias com as canas do milho depois de apanhado, ficando o campo enorme cheio do que pareciam ser pequenas tendas de índios; lembro-me de ter aprendido a jogar à sueca com ele (e que bem que ele jogava); e ficará para sempre a pequena mitologia familiar que ele criou à sua volta – acreditava, há anos, que iria morrer em Agosto e, por isso, sempre que passava esse mês, ele ficava descansado pois tinha imunidade para mais um ano. E, ano após ano, toda a família brincava com isso, mas no fundo todos nós acreditávamos um pouco nessa verdade criada por ele. É pena que não se tenha cumprido…
Enfim, isto não serve para me lamuriar, nem nada que se pareça. Queria apenas partilhar com alguém estas pessoas e não mantê-las guardadas dentro de mim. Não é justo para mim, nem para elas. O povo gosta de dizer que as coisas más têm sempre um lado bom, um ensinamento. Ainda gostava que alguém me explicasse o que de bom se tira da morte de boas pessoas… Como diz Lobo Antunes, "a morte é uma puta". O máximo que se pode fazer é dar mais importância às pessoas do que à morte. E fazê-las sobreviver à morte, e não enterrá-las com ela, é um bom princípio.